domingo, 11 de novembro de 2012

"Neste mundo de instituição, cataloga-se até o coração"


"A receita é muito antiga e tem tanto de simples como de eficaz.
São só dois os seus ingredientes: um material e outro psicológico.
Confecciona-se assim...
Empobrecem muitas pessoas. Tira-se-lhes primeiro o trabalho regular e depois a possibilidade de ter qualquer um, mas não se lhe diz isto honestamente, para elas terem, ao princípio, esperança, e por terem ainda esperança vendem os bens mais valiosos para aguentar a vida e depois os que pouco valem. A casa que tentaram segurar, porque a casa é o abrigo, o refúgio, vai de seguida. As que têm filhos pequenos, as que estão doentes... depressa se tornam entram numa situação de fragilidade máxima, desorientadas aceitam qualquer coisa... ou desistem.

Ao mesmo tempo (tem de ser ao mesmo tempo) e de forma progressivamente acentuada, incute-se-lhes uma paradoxal culpa pelo seu próprio estado de pobreza, estado a que chegaram por não terem sabido disciplinar as sempre ilimitadas necessidades e vontades inerentes à condição humana, por não terem conseguido renunciar às muitas tentações das montras reais e virtuais. Habituaram-se a ter o frigorífico cheio, era só abrir a porta e tirar (isto disseram-me um dia destes).

Em pecado, têm de percorrer o clássico caminho da penitência, têm de sofrer para se purificarem. Em momentos de alguma lucidez, pressupostos alinhados em cima da mesa, essas pessoas percebem que alguma coisa não bate certa, que aspectos fundamentais são omitidos, distorcidos, mas a repetição faz milagres: o discurso que se sobrepõe a todos os outros é o do indicador estendido, está em todo o lado e elas vacilam, admitem... "por minha culpa, por minha tão grande culpa"...

É chegada a hora de fazer emergir a imutável caridade. Mas tem de ser com pujança, concertadamente, para se notar bem, para se agradecer muitíssimo. "O pobre no seu penar, habitua-se a rastejar" e vai pedir a sopa, o pão, o reforço alimentar para as suas crianças.

E vemos (mas temos de nos aprimorar para ver) as poucas pessoas que fizeram empobrecer muitas pessoas a destacarem-se, a sair "com muita pena do pobre, coitada[s]". Aliadas ao poder que nos tutela e que, ufanamente, lhe confia dinheiro (das muitas pessoas, naturalmente), distribuem com ponderação o essencial, só o essencial, nada mais do que o essencial: está tudo sob controlo, sabe-se precisamente quantas crianças têm fome, pois "neste mundo de instituição, cataloga-se até o coração".

Preciso de mais umas palavras do filósofo, José Barata Moura, para rematar este texto "Não vamos brincar à caridadezinha".
Retirado de   http://dererummundi.blogspot.pt

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